Por Guajajara
Reverência e saudação, desmundo em debandada, Cuti em campo aberto é arma pronta pra batalha.
As cores e as guerras do mundo antinegro nunca foram tão mais óbvias que agora contra Alkebulan e seus filhos voltaram a chamar por seu nome e o seu espírito o tempo povoou . Um tempo trazido da década dos séculos que se esboroa pelos milênios. Luiz Silva, que sob o pseudônimo Cuti rompe em campo aberto para ser interpretado e entendido como uma das bússolas de sentido da expressão da personalidade e da subjetividade africana re-nascida no Brasil, através de suas incontáveis contribuições para a educação antirracista, para a estética africana diaspórica e transatlântica e na política (via Movimento Negro) — como desde a própria criação — dos Cadernos Negros, estando ausente apenas em uma de suas edições com contos e poemas até 2019.
Estas palavras facilmente encontradas em suas minibios espalhadas em suas obras, não subsumem o homem negro em sua trajetória, mas sim desvendam ou insinuam e sugerem os percursos que compõem a sua obra. Com vida acadêmica que dividida entre a USP e a Unicamp, o doutor em Literatura Brasileira, significa um dos casos em que militância afrodescendente, o talento literário e a profissionalidade do ofício fazem com que as palavras destoem de seu lugar maximamente cansado e desgastado pelo panfleto e pela propaganda. Cuti imprime na linguagem as marcas viscerais da experiencia diaspórica no contexto afro-brasileiro entre lutas, sabores e dessabores.
O autor que reaparece em “axéconchego em face do fuzuê” (Organismo Editora, 2020) experimenta ao limite as fronteiras criativas da linguagem poética e os atravessamentos entre paisagens afrocêntricas em panoramas antinegros, entre perspectivas e indícios, o universo e o contexto, o neologismo e as formas contemporâneas da ancestralidade que se atualizam mutuamente entre olhares que reveem a uma modernidade supremacista e colonial ao mesmo tempo em que indica com sutileza, sagacidade e muita técnica a delícia e a dor de ser quem se é: africano em diáspora, negro instruído no segredo de saber-se de nós e nossos caminhos e descaminhos, de todo nosso horror ao choque implícito gravado em cada músculo e pétala, em cada, “intimáfrica” de “irmãos albinos” e “misérias atemporais” às quais “ a liberdade em fúria/ cavalgando desejos de prazer reprimidos/sem fel ou absinto/lançará nosso mundo/para fora do labirinto”.
Se Paul Gilroy evoca o Atlântico Negro como estratagema de compreensão do complexo das rotas transatlântica desde África até às Américas, Cuti aponta para um “centro da África/ raiz que se exuma/somos um…/ou melhor uma!” “centelha” de tudo “transmutado em mito”, ainda no mesmo poema “Em questão”, o autor nos diz: “antepassados são muitos/dispersos na sombra/ancestrais alguns/imersos no sol de seus feitos/pelo exemplo eleitos/egunguns”. E esse lirismo clínico, certeiro, cirúrgico condensa e contempla uma dicção que é ao mesmo tempo gesto anticlímax da violência e morte física e social provocada pelo racismo, e antecipa a um “futuro como direito e conquista” na primeira parte do livro.
A memória atua de forma contundente no espectro simbólico e imagístico da obra, principalmente uma memória lastrada de oralidade e cosmogonia que propõe o problema da identidade e do reconhecimento do negro numa esfera política da nação. No poema “Em certos momentos” que abre o livro pode-se observar a íntima relação posta e justa posta entre os motivos e temas ancestrais africanos em seu “excesso de significação” da metáfora, como insinua Paul Ricoer, transbordando a crítica da linguagem e transcendo a compreensão da sobreposição de mundos e realidades e seus sentidos e relações. Logo tem-se que
“maré de mágoas se eleva
na retranca
silenciosa
sem trégua
a raiz da paz arranca
dos naufrágios
trancas enferrujadas
de cada cela
mais adensam entranhada recusa
até a flor mais funda
é o dedo
que acusa.”
As correlações semânticas e as sintaxes de sentido semiótico das palavras evocam significados marcantes na poética afroatlântica de Cuti. Como neste poema em que desde o “mar”, posto num sentido direto com a ideia de elevação contraposta pela sua resposta implícita, o naufrágio, fazendo eco a tantos de nós que acorrentados até mesmo uns aos outros naufragaram em alto mar, ainda refém das trancas-retrancas do silêncio da cela onde consumidos por essa trégua que é, também, uma forma de recusa que no interstício faz emergir da raiz a flor que, na profundidade de certos momentos, ainda assim acusa.